Em parceria com a Editora Truz Truz, o Centro São Cirilo tem vindo a celebrar o tema da liberdade com diferentes autores. Os autores vêm ao Centro e em conversa com os utentes do Centro são recolhidas várias ideias, histórias e opiniões e a partir daí são criadas novas aventuras para serem lidas e partilhadas, partilhando assim a liberdade.

BECO DA LIBERDADE

– Truz truz. É este o gabinete dos direitos e deveres?

– É sim, pode entrar. Trouxe os seus documentos: identidade, segurança social, cadastro, declaração fiscal?

– Trouxe, faça o favor de conferir. Estou aqui por causa dos meus direitos.

– Os documentos estão em ordem. De que direito deseja beneficiar?

– Da liberdade.

– Ui! A liberdade tem um preço muito elevado. Começa logo porque há liberdade e liberdade. Que liberdade pretende adquirir? A liberdade de consumir? A liberdade de obedecer? A liberdade de comer uma sopa (aconselho-lhe esta última: fica praticamente ao alcance de todas as bolsas)? A liberdade de beber um copito (outra que fica bastante em conta)?

– Estava a pensar em liberdades mais vastas: liberdade de circulação, liberdade de pensamento, liberdade de expressão…

– Ui! Mas aí entramos em terrenos movediços… Não se esqueça de que a liberdade se define pelos seus limites, lembre-se da máxima consagrada: «a liberdade de cada um pára onde a começa a de outrem.» Não sei se já reparou que a liberdade funciona estritamente da mesma maneira que a propriedade: o meu terreno (ou o seu) acaba onde começa o do vizinho. Ora vamos lá pôr os pontos nos is: liberdade de circulação, integral enquanto você não sair do seu terreno, mas sujeita a restrição mal você penetra em terreno alheio. Portanto, a liberdade de circulação é-lhe concedida enquanto o senhor não sair de casa. Quanto à liberdade de pensamento, é preciso muito cuidado. Como há-de compreender, pode ser muito perigosa. Do ponto de vista jurídico, a intenção não é crime, mas do ponto de vista securitário mais vale prender os terroristas mal sabemos das suas intenções, antes que os indivíduos passem da palavra à acção. Por conseguinte, cabe-lhe a si vigiar o seu próprio pensamento e tratar de o manter perfeitamente inofensivo. Entre nós, o exercício do pensamento não constitui um prazer extremo, eu diria mesmo que é tido como um esforço e pode tornar-se bastante cansativo. Muitos são os que desistem de pensar. E não são mais infelizes por isso, bem pelo contrário. Tanto mais que a sociedade fornece toda uma gama de produtos de substituição: filmes, séries televisivas, bandas desenhadas, jogos de futebol… Só se tem o embaraço da escolha. E ainda tínhamos o pedido da liberdade de expressão… E aí alto e pára o baile, tenho a certeza de que a expressão vai muito além do seu pensamento. Vejamos: você não quer agredir ninguém, só que, o seu pensamento, uma vez expresso, pode parecer ofensivo a alguém, sobretudo se esse alguém não partilhar a sua opinião. Ora a ofensa é um delito. Que dava direito a duelo em tempos não tão antigos assim. É a liberdade de combater que você reivindica? Faça o que lhe digo, desista já, essa liberdade apenas lhe vai trazer chatices. Em contrapartida, tenho toda uma panóplia de liberdades a propor-lhe. Se levar três ou mais, faço-lhe um desconto. A partir de seis, tem direito ao preço grossista. Tenho aqui a lista, preste atenção: liberdade de se sentar (esta garante-lhe a tranquilidade: porque é preciso optar entre a liberdade de ficar sossegadinho e a liberdade de fugir); liberdade de deitar-se (unicamente de noite ou em caso de doença, porque o ócio é o pai de todos os vícios): esta liberdade garante a recuperação das forças e a renovação da energia; liberdade de trabalhar: esta é de longe a melhor, porque agrega outras liberdades, tais como a liberdade de poupar, a liberdade de pedir um empréstimo ao banco, a liberdade de sonhar com férias, em suma a liberdade de existir. Vejo que me responde com uma careta; você acha que já experimentou, e ela não satisfez os seus desejos. Porém não se iluda: até agora só experimentou o trabalho como obrigação, não como liberdade, ora é completamente diferente. As pessoas têm ideias erradas. A maior liberdade é a prisão, veja só (mas essa liberdade não se vende, é preciso merecê-la): cama, comida e roupa lavada a cargo do Estado, protecção contra os acidentes da circulação, contra a precariedade dos empregos, contra as mentiras da política e contra a incerteza do futuro. Bem, no fim de contas, qual delas vai levar?

– Preciso de reflectir. Mas volto, não se apoquente. Agradeço-lhe todos os pormenores esclarecedores que teve a imensa amabilidade de me fornecer.

– Meu caro amigo, espere lá. Daqui não se sai a nosso bel-prazer e sobretudo não se sai de mãos a abanar. Portanto, estávamos nós a dizer: liberdade de reflectir e liberdade de partir (provisoriamente, leva de brinde a liberdade de voltar, contabilizo essa da próxima vez). E ao todo acrescento a liberdade de escutar… são 120 euros certinhos, porque já incluí no cálculo a liberdade de pagar.

                                                                                                                                                                                                                                           Saguenail | Portugal | Autor Convidado

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